08/10/24
O ICMS é um imposto de competência dos Estados Brasileiros e do Distrito Federal, que incide sobre a circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços intermunicipais de transporte e de comunicações. O seu regime de apuração é regido pela não-cumulatividade, o que significa que o valor do imposto será apurado mediante a compensação do ICMS destacado nas transações anteriores: em encontro de contas de créditos e débitos, o contribuinte se apropria do tributo recolhido no curso da cadeia de produção e efetua o pagamento apenas da diferença a maior do ICMS incidente sobre a operação, a fim de evitar o efeito em cascata e assegurar a neutralidade da tributação.
Considerando a diretriz da não-cumulatividade e a possibilidade de se apropriar do valor do ICMS recolhido nas transações anteriores, os Estados e o Distrito Federal, muitas vezes, outorgam créditos presumidos do imposto, que consistem na concessão de percentual ou de valor fixo para reduzir a carga tributária da operação. Em essência, os créditos presumidos de ICMS são um instrumento de política fiscal estadual que, de um lado, institui um regime especial de tributação aos contribuintes beneficiários e, de outro, atrai negócios e empresas com o intuito de fomentar o desenvolvimento da região, a geração de empregos, a distribuição de renda, dentre outros.
Em decorrência das repercussões econômicas e financeiras oriundas da concessão de créditos presumidos de ICMS, a União Federal, por muito tempo, adotou a posição de que os créditos do imposto são receitas auferidas pelos contribuintes e que, por isso, compõem o seu resultado operacional e devem ser oferecidas à tributação do IRPJ, da CSLL, da Contribuição ao PIS e da COFINS. No raciocínio do Fisco Federal, os créditos presumidos do ICMS representam uma espécie de auxílio da Administração Pública Estadual ao contribuinte, configurando receitas da modalidade de subvenção governamental, originárias de incentivos fiscais.
Embora seja inegável que a concessão de créditos presumidos de ICMS afeta o fluxo de caixa e as despesas incorridas pelas empresas beneficiárias, a incidência dos tributos federais (i.e., IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) deve ser interpretada à luz dos princípios e demais regras do sistema tributário brasileiro. Nesse contexto, a Constituição Federal brasileira atribui autonomia aos Estados e ao Distrito Federal em dispor sobre suas políticas fiscais, a qual deve ser considerada como uma cláusula pétrea, isto é, uma garantia constitucional que não deve ser alterada por novas leis e nem cerceada pelas Autoridades Públicas.
Esse conflito de competência entre o Governo Federal e os Estados/Distrito Federal não passou despercebido pelos contribuintes, os quais buscaram o Judiciário para afastar a exigência do IRPJ e da CSLL, do PIS e da COFINS sobre os créditos presumidos de ICMS. Após amplo debate, os Tribunais Superiores se manifestaram com o propósito de encerrar a controvérsia. Ou, ao menos, era o que se esperava.
Inicialmente, em decisão publicada em 1º de fevereiro de 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a incidência dos tributos sobre a renda (i.e., IRPJ e CSLL) sobre os benefícios fiscais de crédito presumido de ICMS seria ilegal, na medida em que traduziria uma interferência do Governo Federal brasileiro na política fiscal adotada pelos Estados/Distrito Federal, violando o pacto federativo. Trata-se de um precedente firmado em Embargos de Divergência (EREsp 1.517.492/PR), que consiste em uma espécie recursal que pretende unificar discussão jurídica que, até então, comportava decisões conflitantes dentro do próprio STJ. Significa dizer que o resultado desse precedente jurisprudencial também uniformiza o posicionamento da Corte Superior e deve ser observado pelos demais Tribunais Regionais Federais, ao julgarem a incidência da tributação da renda sobre os créditos presumidos de ICMS.
Na interpretação dominante do STJ, acaso fosse permitida a exigência do IRPJ e da CSLL sobre os créditos presumidos de ICMS, a consequência seria, por via oblíqua, retirar o incentivo fiscal outorgado, sob a soberania da competência tributária dos Estados e do Distrito Federal, e com o propósito de alavancar o desenvolvimento social e econômico por meio da desoneração/redução da carga tributária constitucionalmente prevista.
Por sua vez, no ano de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a incidência do PIS e da COFINS sobre os créditos presumidos de ICMS e afastou a exigência das contribuições sob o argumento de que os valores concedidos pelos Estados não representam ingresso de receitas dos contribuintes e nem acréscimo patrimonial. No entanto, a tese de Tema 843/STF, que terá caráter vinculante aos Tribunais e demais Órgãos Públicos, está com sua aplicação suspensa até que o julgamento seja retomado e finalizado.
É evidente que os créditos presumidos de ICMS são uma redução da carga tributária devida na operação, o que não configura o fato gerador para a incidência do IRPJ, da CSLL, do PIS e da COFINS. Ocorre que, um novo capítulo na jurisprudência envolvendo a tributação dos benefícios fiscais de ICMS modificou, substancialmente, o regime jurídico aplicável a tais instrumentos, inclusive, com desdobramentos para a modalidade de créditos presumidos do imposto.
No ano de 2023, o STJ passou a analisar se os demais benefícios fiscais de ICMS, tais como isenção e reduções na base de cálculo e na alíquota do imposto, poderiam usufruir do mesmo tratamento que foi estabelecido no EREsp 1.517.492/PR, acima destacado, aos créditos presumidos de ICMS, isto é, se as outras modalidades de incentivos e de benefícios fiscais seriam também passíveis de exclusão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
O julgamento ocorrido no ano passado justificou-se por alguns fatores: as demais modalidades de benefícios fiscais possuem particularidades que se diferenciam da concessão de créditos presumidos de ICMS; existia previsão legal específica a excluir tais benefícios da base de incidência dos tributos federais (artigo 30 da Lei n. 12.973/2014 e artigo 10 da Lei Complementar n. 160/2017) e, por fim, a nova análise teria resultado vinculante aos demais Tribunais e pelos Órgãos Públicos que julgassem ações individuais envolvendo a tributação de outros benefícios fiscais de ICMS.
Porém, antes que o tema fosse apreciado pelo STJ, o Governo Federal se manifestou publicamente, em coletivas do Ministério da Fazenda, em repúdio à tese defendida pelos contribuintes. O argumento trazido foi basicamente arrecadatório, alegando que a exclusão dos benefícios fiscais de ICMS da base de cálculo dos tributos federais afetaria os Cofres Públicos e traria consequências maléficas ao orçamento da União.
Pois bem! Em uma polêmica sessão de julgamento, ocorrida no dia 26 de abril de 2023, a Corte definiu que os demais benefícios fiscais de ICMS não podem usufruir da exclusão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL de forma incondicionada, como havia sido autorizado para os créditos presumidos de ICMS.
Para que as isenções, reduções de base de cálculo e de alíquotas do imposto fossem excluídas da tributação do IRPJ e da CSLL, os valores deveriam ser lançados em conta contábil específica (conta de reserva de lucros – Incentivos Fiscais), bem como deveriam ter destinação específica, i.e., devendo ser comprovado à Receita Federal do Brasil que os recursos obtidos pelas concessões estatais seriam empregados na viabilização das atividades das empresas.
Não satisfeito com a resolução conferida pelo Tribunal Superior no Tema n. 1.182/STJ, o Governo Federal decidiu solucionar a suposta perda na arrecadação por seus próprios meios. É o que fez com a edição da Medida Provisória n. 1.185/2023, atualmente convertida na Lei n. 14.789/2023.
A Lei n. 14.789/2023 revogou todas as disposições legais que permitiam a exclusão dos benefícios fiscais de ICMS da base de cálculo dos tributos federais, com destaque para as regras do artigo 30 da Lei n. 12.973/2014 e do artigo 10 da Lei Complementar n. 160/2017. O novo regime jurídico prevê um mecanismo de crédito fiscal que poderá ser utilizado na compensação de tributos apenas para os incentivos fiscais concedidos para a implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, as ditas subvenções para investimento.
As subvenções para investimento são espécies de assistência governamental concedidas pelo Poder Público com a finalidade específica de que o contribuinte inicie ou expanda suas operações em determinada localidade. Na prática, a Lei n. 14.789/2023 restringe o aproveitamento do regime jurídico apenas para os benefícios fiscais de ICMS que se enquadrem nessa categoria, ou seja, em que a concessão fiscal de créditos, de isenção ou de redução de tributos somente exista como uma contrapartida direta à criação/expansão do empreendimento econômico da empresa naquela região
Além disso, a nova legislação veda a exclusão dos benefícios na base de cálculo dos tributos federais. A partir de agora, os valores serão tributados pelo IRPJ, pela CSLL, pelo PIS e pela COFINS, mas o contribuinte poderá obter um crédito fiscal, calculado à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento) sobre o “produto das receitas de subvenção”, um conceito trazido pela lei que considera todas as receitas e despesas relativas ao empreendimento econômico. Esse tratamento, porém, está condicionado à habilitação prévia do contribuinte perante a Receita Federal do Brasil (RFB), em procedimento administrativo que analisará todas as informações, bens e receitas vinculados à concessão estatal para autorizar (ou não) o aproveitamento do regime do crédito fiscal.
Para o Fisco Federal, a vigência da Lei n. 14.789/2023 torna sem efeito todos os pronunciamentos do Poder Judiciário referentes à tributação dos benefícios fiscais de ICMS a partir de 2024. De acordo com a Solução de Consulta Cosit n. 253/2023, o novo regime jurídico de crédito fiscal seria aplicável a todas as modalidades de benefícios e de incentivos do imposto estadual, de modo que os créditos presumidos de ICMS também passariam a ser tributados pelo IRPJ, pela CSLL, pelo PIS e pela COFINS.
É fato que as mudanças impostas pelo Governo Federal são controversas. O novo regime jurídico de crédito fiscal desprestigia a materialidade de incidência dos tributos federais que, por regra, deveriam ser apurados sobre os efetivos ingressos de receitas e respectivos acréscimos patrimoniais auferidos pelo contribuinte. Vale dizer, reduz os efeitos dos benefícios fiscais de ICMS que, não se esqueça, são instrumentos de política fiscal para a promoção do desenvolvimento social e regional.
Mas, o principal ponto de debate é se a Lei n. 14.789/2023 poderia alterar o tratamento tributário já consolidado pelos Tribunais Superiores ao crédito presumido de ICMS.
Em nossa visão, a resposta para a pergunta é negativa.
A uma, porque as normas revogadas pela Lei n. 14.789/2023 (artigo 30 da Lei n. 12.973/2014 e artigo 10 da Lei Complementar n. 160/2017) não eram aplicáveis à tributação do crédito presumido de ICMS. No julgamento do Tema n. 1.182/STJ, o Superior Tribunal de Justiças não deixou dúvidas de que as regras de escrituração contábil e de destinação dos recursos advindos dos benefícios não seria aplicáveis à outorga dos créditos do imposto estadual, que seguiriam observando o tratamento chancelado pelo EREsp 1.517.492/PR.
A duas, pois a exclusão de tais valores da base tributável do IRPJ, da CSLL, do PIS e da COFINS é fundamentada em direitos e garantias previstos na Constituição Federal, os quais não poderiam ser alterados por uma lei infraconstitucional. Nesse prisma, a Lei n, 14.789/2023 é, sobretudo, a nosso ver, inconstitucional e deverá fomentar uma nova tendência de judicialização contrária à incidência dos tributos sobre os benefícios fiscais e ao regime jurídico da Lei n. 14.789/2023, de crédito fiscal.
Exemplos que confirmam essa perspectiva são as recentes decisões liminares proferidas em favor dos contribuintes, afastando os créditos presumidos de ICMS do regime jurídico imposto pela Lei n. 14.789/2023. Os julgamentos reconhecem que o mecanismo do crédito fiscal desvirtua os incentivos concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, afrontado a competência tributária e o pacto federativo.
Ao que parece, a tentativa do Governo Federal em anular os julgamentos dos Tribunais Superiores, que afastavam a incidência dos tributos federais sobre os benefícios fiscais de ICMS, resultou em mais uma controvérsia a ser dirimida pelo Superior Tribunal de Justiça, que, recentemente, indicou recursos para serem julgados como paradigmas nesse novo capítulo da tributação dos créditos presumidos de ICMS.
Enquanto os Tribunais Superiores não apresentarem sua resposta definitiva, o regime jurídico da Lei n. 14.789/2023 segue limitando os benefícios fiscais de crédito presumido de ICMS. Por essa razão, os contribuintes devem buscar assegurar o direito à exclusão dos créditos presumidos de ICMS da base de cálculo dos tributos federais (i.e., IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) por meio de suas ações judiciais individuais.
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